Arquétipos do degredo, uma problemática

Rafael São Paulo Brandão
(Rafante)[1]

“As prisões prestariam melhor serviço à sociedade se não existissem”
(Pastoral Carcerária)

O Brasil é um dos países de maior população carcerária do mundo. De acordo com o relatório Infopen 2014[2], elaborado pelo DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), o Estado brasileiro figura na quarta colocação do ranking mundial de população carcerária em termos absolutos. As estatísticas são trágicas em todas as especificidades: Taxa de ocupação dos sistemas prisionais, evolução histórica da população carcerária, presos por 100 mil habitantes e percentual de presos provisórios. Para que se tenha a noção de como os números são alarmantes, dados[3] censitários do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) mostram um total de 298.929 presos em regime fechado, 100.127 presos em regime semiaberto, 9.363 presos em regime aberto, 254.608 presos provisórios, 3.816 presos em prisão domiciliar, totalizando 666.843 pessoas em estabelecimentos penais no Brasil, excetuando os 3.457 internos em cumprimento de medida de segurança. A adução desses números é importante para promover o aprofundamento do debate social - objetivo central deste texto - que tem a ver com a problematização do tipo de gestão prisional que melhor se apresenta a população carcerária no sentido de ressocializar e dar autonomia a seus elementos integrantes.
Impõe-se como preliminar a informação de que o presente trabalho não intenciona recomendar um modelo de gestão prisional que se adeque as peculiaridades de cada segmento social da população carcerária de maneira a atender suas legítimas expectativas. Muito pelo contrário, entende-se que qualquer medida restritiva de liberdade que culmine em encarceramento é tão-só reflexo de um sistema socioeconômico que historicamente organiza, impõe e intensifica, através de seus respectivos instrumentos burocráticos, a violência de Estado contra os que se apresentam em situação de vulnerabilidade social. A prisão, por si, é instituto legal primaz que inflige dor, sofrimento e amargura, pela restrição à liberdade, ao convívio social e aos direitos civis. Existe para segregar o cidadão que cometeu prática anti-normativa e para castigá-lo como forma de evitar ato reincidente. É nesse sentido que nenhum paradigma de gestão prisional é defensável como socialmente superveniente. A prática de atos delituosos é evitável quando, subsumidos os fatores de pleno convívio harmônico, sejam garantidos os direitos coletivos e individuais, se constituam plenas as condições de autossuficiência e autodeterminação e sejam asseguradas as circunstâncias que possibilitam integração social e cidadania. Condicionantes estes que têm como fundamentos a inexistência de discriminação por raça, cor, sexo, origem, opinião e de qualquer outra forma de hostilidade. O que se busca com essa reflexão é, de fato, lançar mão de elementos que permitem discutir (problematizar) com maior propriedade algumas experiências administrativas acerca dos modelos de gestão carcerária existentes.
Nessa perspectiva, cabe informar que a Lei 7.210/84 (Lei de execução penal) é classificatória dos estabelecimentos penais, quais sejam: Penitenciária (Destina-se ao condenado à pena de reclusão, sendo de regime fechado); Colônia agrícola, industrial ou similar (Destina-se ao cumprimento de pena em regime semiaberto); Casa do Albergado (Destina-se ao cumprimento de pena restritiva de liberdade, sendo de regime aberto, e de pena de limitação de fim de semana); HCTP – Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (Destina-se ao inimputável ou semi-inimputável) e Cadeia Pública (Destina-se ao alojamento de presos provisórios). Exposta a taxonomia legal, é importante reiterar que o que se pretende aqui não é discutir o melhor tipo de estabelecimento penal, mas complexificar as minúcias de um modelo de administração de unidade prisional que apresente elementos que minimamente reduzam o desrespeito flagrante aos direitos humanos constatado no sistema carcerário brasileiro, e tendo por objetivo singular, estimular as discussões que descambem na mitigação da manifesta brutalidade inerente aos modelos por ora experimentados em nossa realidade.
Isto posto, serão demonstradas, com base nas estatísticas do relatório Infopen 2014, experiências de gestão estatal de presídios (correspondente 92% do total), cogestão (3%), gestão em Parcerias Público-Privado (1%) e gestão de ONGs (3%), em especial as APACs (Associações de Proteção e Assistência aos Condenados).
O modelo de gestão estatal - pelo qual o Estado é responsável pela construção e administração dos estabelecimentos penitenciários, e pela custódia dos presos - é predominante no Brasil; representa cerca de 92% das unidades prisionais do país. Responde também pelas trágicas consequências sociais de formação da maior taxa de reincidência criminal (cerca de 75%) dentre os modelos a serem expostos. Por ser o maior e o mais antigo, é também o que assume maior volume histórico de registros oficiais de rebeliões e mortes (cerca de 40 por mês). Contribui significativamente para o esfacelamento do sistema prisional brasileiro que, por sua vez, é resultante de problemas estruturais da política criminal do país. Exibe a incompetência do Estado brasileiro em seus mecanismos de incentivo à reinserção social. É, sobretudo, nos ditos “presídios comuns” (penitenciárias estaduais) que esse modelo de gestão se coaduna com as mais diversas violações de direitos humanos praticadas pelo Estado, com a utilização de métodos como tortura, linchamento, racismo, disseminação de comportamentos abjetos, negação dos direitos, da dignidade da pessoa humana e do acesso à saúde, à justiça e à cidadania. Trata-se de um modelo forjado no período da ditadura militar e que legitima todo tipo de tratamento desigual, “inovando” a cada ano com uma taxa de incremento de 7% de aumento da população carcerária nacional. Nos “presídios comuns” sob gestão estatal, o Estado demonstra sua ineficiência em zelar pela vida; os crimes cometidos nos presídios não são investigados, não há garantia de direitos fundamentais, ficando, portanto, os custodiados à própria sorte. Dados do Infopen 2014 mostram que 28% dos estabelecimentos prisionais não têm sequer a possibilidade de identificar o tempo total das penas de seus respectivos “abrigados”. As penitenciárias não fornecem materiais nem insumos básicos aos presos como: colchão, lençol, sabonete, toalha, roupas, papel higiênico; as prisões são destituídas de celas individuais e de ambientes salubres, não têm os requisitos mínimos exigidos pela lei de execução penal que orienta em seu art. 83 que “O estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva.”. Além disso, há que se mostrar que somente 63% dos presos são atendidos pelas defensorias públicas, cerca de 63% das unidades prisionais não têm módulos de saúde, cerca de 89,3% dos presos não estão envolvidos em atividades educacionais, neste item, como supedâneo, cabe informar que a Portaria nº 276/2012 da Corregedoria Geral da Justiça Federal estabeleceu que o detento pode reduzir a pena em até 48 dias por ano com a leitura de livros, mas as práticas educacionais dentro das unidades prisionais são invisíveis. Por conseguinte, é importante salientar que somente 16% dos presos realizam atividades laborais. A partir desses dados, infere-se o drama de quase que de incentivo as chacinas e a formação de facções que, ao contrário de serem causas, são sintomas dos massacres. Trata-se de um modelo que retrata a completa falência da gestão pública no sistema prisional brasileiro.
Outrossim, a gestão privada (cogestão e PPPs) não apresenta bons resultados. A cogestão é o modelo pelo qual o estabelecimento prisional é construído pelo Estado, que mantém a direção e a segurança externa, enquanto uma empresa privada mantém a alimentação e a hotelaria, e a segurança interna em alguns casos. Já a PPP (Parceria público-privado) é o modelo pelo qual empresas privadas constroem e administram os estabelecimentos prisionais. Alguns juristas discordam da terminologia “gestão privada”, na medida em que o Estado não pode privatizar serviços de ressocialização e custódia de pessoas; preferem o uso do termo “gestão terceirizada”. Defensores da proposta de gestão privada apontam dados da nefasta experiência do modelo estatal e firmam que critérios explícitos de seleção de empresas, projetos e objetivos bem definidos de contratação, com monitoramento das metas, são instrumentos que condicionam avanços significativos em relação a realidade histórica. Alguns governantes, elencando características que designam como positivas, entendem o modelo de gestão privada como um estímulo primoroso ao aumento do número de pessoas que trabalham nas unidades prisionais, devido as dificuldades que a lei de responsabilidade fiscal impõe a contratação de servidores públicos. Por outro lado, os críticos do modelo de gestão privada afirmam que ressocialização é prerrogativa do Estado e que as empresas privadas, por sua natureza, preocupam-se exclusivamente com os lucros. Do ponto de vista financeiro, o custo por preso é maior no modelo privado. No modelo de gestão estatal o preso custa cerca de R$ 3.000,00 por mês aos cofres públicos, sendo que no modelo privado o custo aumenta para R$ 5.000,00 por mês. O grande problema da gestão privada é que os índices de ressocialização não são diferentes dos índices da gestão estatal. As empresas não aceitam líderes de quadrilhas e presos de alta periculosidade. As instalações apresentam melhores condições, mas há maior rigidez disciplinar, falta de água, comida e denúncias de tortura cometidas por vigilantes são constantes. Tomando como exemplo o Compaj, Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), que é administrado em cogestão pela empresa Umanizzare, dados[4] de dezembro de 2016 da Pastoral Carcerária mostram 454 vagas para 1.224 presos, portanto superlotação de 370%. No período de gestão da Umanizzare continuaram as denúncias de maus tratos, houve aumento na população carcerária e continuidade da precarização de serviço de assistência ao jurisdicionado. Um dos dados mais alarmantes tem a ver com o fato de que a quase totalidade dos presos prefere ser "apenada" em presídios do Estado e não nos privados. Trata-se de um modelo que se mostrou incompetente ante a realidade do sistema prisional brasileiro.
O modelo de gestão por Organizações Não-Governamentais (ONGs) tem a ver com propostas menos custosas e mais humanizadoras, tem como foco a abolição da ideia de punitivismo e priorização de medidas de reintegração social, solução de conflitos e justiça restaurativa. Também visa ao lucro, mas de uma maneira ou de outra, por ter caráter próximo ao filantrópico, tem como importante foco a dignidade da pessoa humana. A experiência que melhor denota esses objetivos é a das APACs (Associações de Proteção e Assistência aos Condenados). Trata-se de um modelo em consolidação que representa cerca de 3% do total das unidades prisionais. São estabelecimentos nos quais não há seguranças armados, arames ou cercas. O que há são jardins, hortas, trabalho comunitário, assistência à saúde, projetos culturais, atividades educacionais, desportivas e artísticas. Das 2.769 prisões existentes no país, somente 50 são administradas por APACs[5]. O custo mensal por preso é de R$ 800,00 e o índice de ressocialização tem média de 95%, contra os 25% dos demais modelos. Os critérios de seleção de apenados são de que estejam condenados em última instância, que tenham família no município onde se localiza a unidade prisional a serem destinados, aceitação das normas internas da instituição e antiguidade na solicitação para inserção nas unidades do modelo. As APACs não fazem seleção de presos por tipo de crime, exceto pela priorização de participação dos que têm penas mais longas. A organização do modelo e efetivamente das unidades prisionais é feita por voluntários: médicos, professores, massoterapeutas, cozinheiros, advogados, dentistas, psicólogos e, sobretudo, pelos próprios apenados em um ambiente de colaboração. Constitui-se como um verdadeiro sistema de pessoas que acreditam na transformação dos apenados e do sistema carcerário. A rotina não deixa de ser rígida, o trabalho é diário, há compromisso com a limpeza e exigência com os estudos, o acompanhamento da família é constante e obrigatório, os presos são responsáveis pela própria segurança, recebem assistência jurídica e médica, produzem grande parte dos alimentos que consomem. Não se trata de um modelo fora da realidade. Existe, está em vigor e, novamente, ressocializa em média 95% dos internos. Pode ser expandido através de uma política governamental criminal que valorize o cidadão. Trata-se de um modelo que está dando certo, apesar de, para isso, ter de preconizar alguns dos ensinamentos da fé como “pedagogia de recuperação”. A proposta que aqui se sugere é que o Estado desenvolva um modelo com esse formato que, ao invés de ser administrado por Organizações Não-Governamentais, seja administrado pelos órgãos da sociedade civil organizada.
As discussões que ensejam as mínimas decisões acerca dos modelos de gestão de estabelecimentos prisionais mitigadores da violência social carecem de amplitude e espaços que permitam a problematização do tema que, de antemão, como já visto, tem natureza bastante complexa. Nesse sentido, algumas propostas se fazem necessárias, dentre as quais: quantificação na aplicação da lei de medidas cautelares para contribuir com o desenvolvimento de uma “cultura” jurisprudencial que possa substituir parte das penas de reclusão por alternativas penais (o que se nota é que o judiciário brasileiro é um dos que mais prende e privilegia a reclusão à imputação de medidas alternativas); priorização na ressocialização ante a expansão de vagas do sistema carcerário; abolição das polícias militares e implantação de uma polícia civil unificada sob controle social; estruturação de conselhos comunitários; redução das prisões preventivas por alternativas penais com a implantação de um sistema que obrigue a imediata audiência de custódia; autonomia dos custodiados para acompanhamento eletrônico de processos; transferência da assistência à saúde nos estabelecimentos prisionais para a esfera do SUS e constituição de órgãos de perícias autônomos desvinculados das secretarias de segurança pública. Essas são sugestões que merecem ser discutidas como parte de um amplo debate acerca do processo de reconstrução do sistema carcerário brasileiro.

BIBLIOGRAFIA:
BARATTA, Alessandro.  Criminologia crítica e crítica do direito penal:
introdução à sociologia do direito penal. [Tradução Juarez Cirino dos Santos]. 2.  ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1999.

BELO HORIZONTE-MG. Tribunal de Justiça, Projeto Novos rumos da  execução penal. Cartilha da APAC. 2004

BRASIL. Lei no 7.210 de 11 de julho de 1984.

BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponível em www.mi.gov.br/depen. Acesso em 11 de junho de 2017.