Narrativas antropológicas: Topoesquerdologia



(Rafante)
      O saber geográfico se distingue pelo conhecimento do espaço. Espaço e tempo são duas dimensões fundantes da realidade, exigentes do saber científico. A História interpreta o espaço temporalizando-o. A Geografia relaciona-se com o tempo espacializando-o. Na Física, espaçotempo é estrutura indissociável. Na literatura, espaço-tempo é forma, por vezes, negável. Não seria parcimonioso de minha parte adentrar por outra noção de espaço-tempo que não a geográfica: à qual sou mais ou menos alfabetizado. Dessa forma e para discutir alguns termos espaciais, cabe primeiramente informar que o geógrafo é arauto da problematização dos mais ingratos conceitos-chave. Espaço, tempo, região, lugar, território, rede, escala e alguns poucos mais, como sempre afirmo, são termos pelos quais me debruçarei por anos a fio. Entretanto, ao que parece, local e distribuição, conceitos manifestamente topológicos, foram os que mais me impressionaram naquela noite de segunda feira, 30 de outubro de 2017, especificamente às 18:45h.
      O topos, prefixo grego que nomeia local, foi a FACED (Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia); o logos, sufixo grego que nomeia estudo, foram as três beldades à espera do início das aulas. Como se sabe, Topologia é o ramo da matemática que estuda a organização da matéria no espaço, tida como extensão da Geometria. Local é o ponto de referência topológico que tem na centralidade seu potencial elemento de reprodução. Assim, a multiplicação do local permite a constituição de uma rede de elementos nodais, à qual chamamos distribuição. Para melhor explicar: Imaginemos o monte Evereste em seu topos. Trata-se de uma simples montanha (local). Agora imaginemos o K2 em seu topos. Trata-se simplesmente de outra montanha (local). Ao fim, imaginemos o Evereste ao lado do K2 e, este, ao lado de outras montanhas. Trata-se de um complexo denominado Cordilheira do Himalaia (distribuição). Local e distribuição são conceitos singulares nos quais o estabelecimento das inúmeras conexões interlocais permite, como consequência, sua respectiva execução distribucional. Esse prisma matricial de interpretação da natureza do espaço ainda é prevalente nas Geociências, motivo pelo qual se faz necessária uma abordagem que o suplante. Assim sendo, apresentarei oportunamente, em outro artigo, uma perspectiva crítica, manifestamente iconoclasta acerca do tópico.
      Por conseguinte, é interessante notar a problemática que atua sobre a escala, especificamente quanto ao recorte espacial. O olhar sobre o local (centralidade) é dissecador da natureza personalíssima. Por outro lado, a perspectiva distribucional (panorama) é decifradora das totalidades. Fixar-se no local significa detalhar a estrutura do elemento que o funda. Sair do local para entender a distribuição, em um movimento dialético, é o mesmo que deixar a natureza do particular para entender o conjunto. Por outro lado, fixar-se na distribuição significa sintetizar um universo de representações. Em retorno, sair da distribuição para entender o local é refazer o particular, ressignificando-o e enfraquecendo a dimensão do conjunto. Neste contexto, a dialética consubstancia-se como um método de interpretação da realidade que se funda na exploração de contradições e - por assim o ser - contribui de maneira eficiente para a resolução do imbróglio em questão, perfazendo o movimento natural de vai-e-vém desvelador de realidade(s).
      O fato é que as três estavam juntas e separadas. Juntas por uma distância de menos de trinta centímetros, certamente. E separadas pela virtualidade digital. Possivelmente cada uma delas estava conversando nas redes sociais com pessoas a quilômetros de distância. Talvez uma estivesse conversando com alguém do Tibet, outra conversando com o tio em Porto Alegre e outra com o colega do andar de baixo. Não havia como saber. No mais, a tecnologia digital permitiu a diluição do tempo no espaço. Os tempos se imediatizaram e o espaço é, agora, global. A da esquerda estava de macacão jeans (short e blusa em peça única), percata rosa, brincos, anéis e o celular preto com tela grande. Cabelos encaracolados na altura dos ombros, sobrancelhas finas, braços fortes e pele morena. Uma beleza-maravilhosa, no entanto, não temo dizer que se trata de uma beleza bastante comum. Paro aqui por uns instantes para esclarecer que meu conceito de beleza é absolutamente particular. Beleza, para mim, é algo que sai do coração das pessoas e se exterioriza concretamente, tomando a forma do corpo. Para exemplificar, Irmã Dulce é uma das mulheres mais bonitas que já vi na vida. E, não obstante a isso, eu sou ateu. Todavia, chamo aqui de beleza o padrão estético que considero relevante. Como a Giocconda de Leonardo da Vinci que tem na geometria das faces a matemática proporção áurea. Não que seja uma contradição de minha parte, mas não encontro, neste momento, melhor adjetivo a caracterizá-las que "belezas". Ademais, não poderia eu, transfigurar minha pesquisa em observação participante e entrevistar (dialogar com) cada uma delas para saber se realmente são "belezas" em índole. Pois, como dito, o belo não se resume a um senso estético, visto que contempla a totalidade da humanidade de cada ser. Mas, voltando aos fatos, a do meio estava de blusa preta, bermuda leve e sandálias de dedo. O celular, cujo modelo não consegui identificar, movimentava-se quase que autonomamente. Ela tinha velocidade incomum nos dedos. Cabelos lisos, pretos e cheios que ultrapassavam a clavícula. Pernas grossas, rosto redondo e lábios salientes. Ela é linda! Exageradamente linda! Izabela é o nome da beldade. Eu a conheço de velhos tempos e não tenho condição de descrever, no presente e breve trabalho, os inesquecíveis momentos que vivemos juntos. A da direita seria minha esposa, se não fosse esta enfadonha tentativa de pesquisa etnográfica. Digo “tentativa”, visto que não passa de um amontoado de impressões sem o menor respaldo científico. Ainda sou estudante e, há que se dizer, não tenho competência para assinar despachos. Acontece que certamente iria perguntá-la alguma coisa sem noção do tipo "Tire uma dúvida: Você prefere brincar de amarelinho ou almoçar com a família em dia de domingo?". É risível como sempre consigo namorar garotas com esse tipo ridículo de conversa. Ela é muito gostosa (diga-se carnuda) e tem peitos salientes. Desculpem o acesso [sic] de sinceridade. Isso me basta. Só pelo perfil topográfico daquele corpo eu casaria com ela, mesmo sabendo que essa forma de pensar é puro preconceito. No mais, havemos de nos contentar com essas características, pois eu não saberia como qualificar a perfeição. Minha atenção fora apreendida totalmente por ela.
      Na Geografia, os maiores embates teóricos se dão entre as correntes fenomenológica e materialista. A fenomenologia apresenta o lugar como categoria espacial de comunicação e pertencimento. Para os teóricos dessa corrente, o enraizamento dá o tom do lugar que é interpretado como identitário e conectivo. No lugar não há estrangeiros. Já para os materialistas, o lugar é o espaço primaz da produção social. Dessa forma, o lugar se dinamiza com as fábricas do bairro, a padaria, o mercadinho, o vendedor de geladinhos e o colégio das crianças. No lugar materialista as instituições são veículos do capital tangível e o trabalho, sobretudo o inerente conflito trabalho vs capital, é transformador da paisagem. Essa relação pode ser estabelecida em minhas observações quando minha referência era aquela mulher da direita. Meus olhos eram seus prisioneiros e eu só conseguia observar aquele local (singular). Eu me apegava a todas as suas particularidades. Da maneira de se movimentar às suas mínimas expressões faciais. Em exercício distribucional, descentralizei meu olhar e tomei-as (as três) em perspectiva. A luz estava com a intensidade adequada. Na parede havia uma obra de arte colorida com um separador em acrílico, colocado pela prefeitura do campus para protegê-la. Eu estava encostado no canto do segundo lance de escada inferior, entre o térreo e o primeiro andar. Todas elas, as belezas, envoltas pelo celular (objeto técnico por excelência). Foi um quadro maravilhoso, mas no qual eu não conseguia atender perfeitamente cada elemento em sua peculiaridade.
      No final das contas, um rapaz mais forte, mais alto e "esteticamente" mais bonito que eu, sentou-se à extrema-direita, e deu um selinho na mais-bela-das-belas. Minhas sobrancelhas se contorceram em feição de frustração. Meu consolo não passou de um simplório dado de posição geográfica ou, como queira, topológico. 

     Ainda bem que não conversei com a bela. Eu sou anarquista por excelência, portanto milito na esquerda. Ela eu não sei o que é, mas pela posição em que se sentou já vi que não é boa coisa.