Narrativas antropológicas: Artefacto

(Rafante)
      Uma das questões mais intrigantes de que tenho conhecimento tem a ver com o significado da arte. O que é arte? Penso que podemos tratá-las (a questão e a arte) a partir de múltiplas perspectivas. Ao meu ver, arte se associa com qualquer atividade deliberadamente orientada a elaboração de expressões de cunho estético. Isto posto, não se trata, assim, por exemplo, de criticar genericamente a produção estética, tampouco trata-se de problematizar a estética, mas sim, do ato de conceber um artefato - objeto destinado a contemplação. Sabemos que artefato (feito com arte) é um significante polivalente, portanto, possui vários significados. Sendo, portanto, caracterizado como desde objeto inofensivo até objeto letal. Ocorre, todavia, que me parece que a língua portuguesa lida gramaticalmente com o vocábulo artefato como uma aglutinação de duas palavras. Essa impressão, colocada sem pormenores, dá a entender que estou negligenciando os termos, o que não deixa de ser uma perspectiva. Situando-se em outro âmbito, questiono se pode um artefato militar ser artisticamente produzido. Ora, não dizemos que uma granada é um artefato? Por outro lado, podemos dizer que a Pietà de Michelangelo ou a Nossa Sra das Dores de Aleijadinho são artefatos? É no mínimo contraditório que o mesmo significante seja destinado a significar objetos com funções opostas.
      Contemporizando nossa história, comecemos na Escola de administração da UFBA, 16 de Janeiro de 2017, 21:50h. Nesse seguimento, posso afirmar que conheço uma parte dos banheiros da UFBA a partir das visitas empreendidas sob motivação de elaborar o presente diário. Aquele, por exemplo, foi o momento de me desvirginar com os da Escola de Adm. Meu objetivo era fotografar portas de banheiros masculinos para engendrar narrativa acerca das expressões nelas transcritas. Não me indisporei sobre a temática, posto que será, também, escopo de elaboração de outro diário. Isto antecipado, afirmo, ainda, que não me lembro de ter entrado anteriormente na Escola de Adm UFBA. Assim que o fiz, naquele momento, ao subir o primeiro andar, encontrei uma bela escultura ou – devo dizer – uma manifestação artística. Impressionei-me com o busto que se dispunha a mim e decidi apreciá-lo após minha aventura fotográfica. Fui ao banheiro ao lado, captei com as lentes de 20mp do meu KZOOM os “hieroglifos” gravados por trás das portas e voltei ao meu objetivo, qual era: contemplar a beleza de um busto de mármore, ou melhor, contemplar uma manifestação artística. A apreciação de uma obra de arte é indubitavelmente uma curiosa atividade. A maior manifestação artística em forma pictórica que existe na Terra, em meu julgamento, é a obra O adeus de Manoel Lopes, artista baiano do Séc. XIX, integrante da Escola Realista. Frequentemente vou ao museu da Bahia para apreciar o bendito quadro. O adeus é uma obra tão impressionante que o tenho como fundo de tela do celular há mais de cinco anos. Não conheço a história do quadro, portanto não sei em que condições nem sob quais circunstâncias foi pintado, nesta senda, já decidi que minha segunda busca historiográfica será feita no IGHB, pois as informações disponíveis na internet são ineficazes a satisfação de meu objetivo. Por conseguinte, quando uma obra me é apresentada, não tenho a menor capacidade de entendê-la sem estudá-la, por isso tenho inveja das pessoas que passam por mim nos espaços culturais e conseguem se apropriar de uma expressão artística em meros 30 segundos. Eu me sinto um ignorante absoluto ante àqueles apreciadores. Observo que ouço uma música algumas vezes para entendê-la e inúmeras vezes quando passo a gostar. Dessa mesma forma atuo com as obras de arte, sobretudo quando visito museus. Geralmente minhas visitas se restringem a um único ambiente ou a quatro ou cinco obras do museu, pois minhas faculdades de apreensão são verdadeiramente limitadas. Essa maneira de agir, por certo, demanda frequentes visitas a espaços destinados a arte.
      Neste contexto, quando me defrontei com o busto na sala de espera dos estudantes na Escola de Adm, tive a impressão de que o próprio Manoel Lopes fosse autor da obra, pois a feição singela da mulher representada, as características físicas e a perfeição com que foi esculpida se iguala a outra obra do Manoel, nomeada A república. Fiquei abismado com a peça e quando, no exercício de reconhecimento do ambiente, olhei para o lado direito, acima do terceiro lance de escadas, encontrei outra obra maravilhosa – um homem vestido com uma manta. Uma estatueta de cerca de 1,6m sobre uma base. Pareceu-me uma representação de Jesus Cristo. Uma estatueta tão impressionante quanto o busto antes mencionado. As dobras incríveis, as quais suponho dificílimas de produzir têm grau máximo de complexidade. Meu estado era absolutamente orgástico e, para melhorar, quando voltei-me ao quarto lance de escadas para fotografar as portas do banheiro do segundo andar, vislumbrei uma terceira escultura, igualmente linda. Penso que, nesta vereda, a arte só pode ser visceralmente realizada quando há liberdade. Digo isso pensando tanto nas motivações quanto nas consequências da produção cinematográfica nazista e do realismo soviético. Em que pese, no estádio atual do sistema capitalista, a arte servir-se de instrumento da burguesia para ampliação do capital fora do processo produtivo e, destarte, de mecanismo da superestrutura empregado nas dimensões dos processos sociais de alienação.
      Ante ao exposto, é consensual que a arte não pode ser encaixotada em paradigmas sem concomitante autodegeneração. Os objetivos da arte são, entre outros, produzir estranhamento, incômodo e transformação social, os quais estão inextrincavelmente ligados a liberdade da própria arte e, em potencial, ao plano das liberdades individuais sem as quais nada pode ser feito. Por fim, indago se o que se diz arte - com discurso de libertador - para esgarçar o senso de humanidade alheio realmente é arte ou somente é ArteFacto?