Narrativas antropológicas: Verba volant, scripta manent
(Rafante)
Banheiros
são ambientes ricos por natureza. Certamente não estou considerando
o banheiro em que se diz “depende do banheiro”, nem refiro-me a
“por natureza” em sentido ortodoxo. Em Portugal, banheiros são
denominados casas de banho; na França, toilettes; nos EUA, WCs (que
não sei o que significa). Podemos chamar banheiro de lavabo,
instalação sanitária, quarto de banho. Enfim, chamemos do que
quiser desde que esteja explícito de que se trata de cômodo
característico de imóvel essencialmente destinado a higiene
pessoal.
Meu
preâmbulo incomum inspira-se no fato de que fiquei impressionado, nesta manhã de 19 de Janeiro de 2018, quando li uma matéria
jornalística no G1 que discorre sobre a vida de Rosana, uma advogada paulistana. Rosana levanta uma placa com o dizer “Faxina
R$ 60,00 / 7h” todas as manhãs na zona sul de São Paulo, quando a
média da diária é de R$ 380,00, de acordo com o sindicato das
empregadas domésticas. Nesta senda, meu estranhamento com o estado
de degenerescência social em que todos nós nos encontramos foi
ampliado após ter lido uma das frases pronunciadas por Rosana na
entrevista. Em outra perspectiva, posso dizer que aprendi a
diferenciar o materialismo mecanicista do materialismo histórico
muito mais com as HQs políticas de Chester Brown do que com as teses políticas de Mikhail Bakunin. Na revista em quadrinhos intitulada “Pagando por sexo”, por exemplo, Chester Brown ensina de forma magnífica que sujeitos oprimidos não
são somente produtos da opressão, mas são, simultaneamente, sujeitos autônomos, responsáveis por si, dotados de
autodeterminação e potencialmente produtores de insubmissão. No
aspecto citado, meu espanto com a frase seria ainda maior, todavia,
Rosana vai aquém, pois conquanto as qualidades mencionadas, ela é
consciente de si. Então no que concerne o espanto? No fato de que
Rosana não é faxineira por opção, mas por condição. Nessa
perspectiva, meu antinaturalismo se recrudesce. Talvez esse não seja
um fato impressionante para grande parte das pessoas que se
acostumaram a conviver com latrocínios, feminicídios, mortes por
inanição e moradores de rua. Neste último tópico um aparte faz-se
imperioso: advogo a tese de que a sociedade deve elaborar um sistema
legal que enquadre em crime de responsabilidade o governante que
permitir a existência de moradores de rua. O fato é que há quem
“naturaliza” os maus feitos e o estado degradante de coisas e há
quem não o faça; acredito que estou inserido no segundo grupo. É
neste âmbito que, porventura, minha jornada começou na noite do dia
16 de Janeiro de 2018 às 21:45h.
Eu
pretendia fotografar as portas das instalações sanitárias dos
campi da UFBA no Vale do Canela. Eu tinha de ser rápido, pois meu
ônibus passaria às 22:15h, portanto dispunha de meros 30
minutos para fotografar algumas das portas de banheiros masculinos do
PAC, FCC (Faculdade de Ciências Contábeis), FACED, Escola de Adm e
ICS (Instituto de Ciências da Saúde). Minha atividade não tinha
cunho etnográfico nem semiológico, posto
que
simplesmente objetivava
fundamentar o presente diário. Pois bem, comecei pelos sanitários
do PAC. A primeira frase que encontrei foi “O sistema é complexo,
espaço para saber pensar” (expressão na qual não entendi a
pretensão do autor). Meu tempo era exíguo; naquela condição eu
não poderia refletir, além do mais, a frase é solecista. As
seguintes foram: “Diretas já!”, “Boquete sexta à noite”, “É
preciso mergulhar em águas mais profundas”, “Cuidado com o cão”
(ao lado da frase havia a representação de(o) cão, “Trismegisto
é rock” (pelo que encontrei na internet, Hermes Trismegisto foi um
filósofo egípcio influenciador de Sócrates. Há uma música de
Jorge Ben e outra de uma banda chamada 3030 dedicadas a Hermes
Trismegisto). Mais adiante, na segunda porta do banheiro do primeiro
andar, havia muitos desenhos que não consegui decifrar. Na porta de
um dos banheiros do segundo andar do PAC havia uma pichação em
grande tamanho. Vale salientar que, para facilitar minha escrita, o
que aqui denominei (e doravante) de porta de banheiro, não se refere
a porta principal do sanitário, mas às portas de cada um dos biombos
que dividem as instalações sanitárias. Naquela altura eu desisti
de fotografar os banheiros da FCC. No da FACED, na primeira porta do
primeiro andar estava escrito “Lambê o cú do porteiro” (sic),
“Passivo quente” (e um número de celular grafado embaixo). Na
segunda porta do primeiro andar havia as mesmas frases escritas no
banheiro, além de mais uma pichação. Subi aos do segundo andar e
as frases se repetiam sistematicamente. A mesma caligrafia denunciava
que algumas frases foram transcritas pela mesma pessoa. Desisti de
fotografar as demais portas dos banheiros da FACED. Fui à Escola de
Adm. No primeiro andar encontrei um busto maravilhoso, objeto de tema
de outro diário. Na segunda porta do banheiro do primeiro andar
havia as seguintes mensagens: “No cu é mais gostoso” (a
frase estava escrita em perfeita concordância gramatical), “Vulcão
passivo te chupa até gozar” (sic). Em uma das portas do banheiro
do segundo andar da Escola de Adm havia uma diferença na tonalidade;
a porta não estava pintada de branco nem envernizada, mas em cor
natural de madeira e com a seguinte frase “Vulcão passivo só toma
no cu de 4...” (achei interessante o fato de o autor ter grafado
reticências). Na gramática da língua portuguesa, usa-se
reticências quando há omissão de um pensamento ou quando o autor
remete ao leitor as contingências da frase. Naquele momento eu
também havia desistido de ir ao ICS. Minhas reflexões estavam em
mútuos espaços geográficos - nas estatuetas da Escola de Adm e em
tentar decifrar o objetivo dos escritos existentes nas portas dos
banheiros. Em outra oportunidade escreverei em detalhes sobre um tema
que, de certo modo, vincula-se a esse objeto reflexivo, qual seja - o
banheiro do bar de Brian (pronúncia: Bráian) no Beco da Lama.
Trata-se de um bar situado em uma das transversais da Avenida Carlos
Gomes. O Beco da Lama é um espaço da cidade assaz frequentado por
homens cis,
mulheres trans
e
por mim (notadamente). No bar do coreano Brian a cerveja é muito
gelada. Vêja-se que naquele ambiente os pichadores usam carimbos com inscrições de poemas para
“tatuar” as paredes dos banheiros. Fico imaginando como deve ser
a natureza de uma pessoa que se predispõe a mandar fazer carimbos de
poemas. Sempre que vou no bar do Brian há um poema inédito
carimbado na porta do banheiro.
No fim das contas, o que tenho a
dizer é que não encontrei respostas para minhas autoindagações
(para que servem aquelas frases nas portas dos banheiros
da UFBA?), em que pese o título em epígrafe, mal comparando as
frases dos banheiros da UFBA com o seguinte poema dito por Rosana na
entrevista: “Fico pensando em leis enquanto limpo privadas”.