Narrativas antropológicas: Desarquetipizando
(Rafante)
Paradigmas
são sinônimos do ridículo. Paradigmas assim o são, principalmente
para mim que sou anarquista. Em minhas primeiras aulas, na UFBA, fui
obrigado a fazer um resumo acerca do conceito de espaço em Estrabão.
Cheguei atrasado na aula, como sempre, e, não sei quem – alguma
colega de que não me lembro agora – deu-me impresso (pasme!) um
caderno com a NBR 6028:2003 para que eu pudesse formatar o texto. No
primeiro mês do primeiro semestre?! Pois bem, a primeira
iconoclastia que cometi ao entrar na Universidade foi queimar aquele
caderno com uma bagana de cigarro. Destarte, posso dizer que Paul
Feyerabend é inspiração para alguns de meus atos.
Quinta-feira,
13 de dezembro de 2017, 21:45h, ponto de ônibus da FAU-UFBA
(Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). Marcelo e eu saímos juntos
do IGEO-UFBA (Instituto de Geociências). Naquela noite eu havia ido
um pouco mais cedo ao instituto, exclusivamente para que o secretário
do colegiado carimbasse meu comprovante de matrícula. Demorei a
voltar para casa, pois encontrei uma amiga e passamos a dialogar
acerca da assaz exigência de identificação pessoal, no ordenamento
jurídico moderno, para que o cidadão possa fruir de serviços
sociais. A conversa motivou-se pela questão do cadastramento
biométrico eleitoral. Pois
bem, fui
obrigado a fazê-lo há alguns semestres. À época foi-me exigido
pela
UFBA,
além de outros documentos, o certificado de quitação eleitoral.
Minha situação era irregular por eu não ter votado nem justificado
nos últimos pleitos. Na conversa, lembrei-me minuciosamente da tarde
em que realizei a biometria no TRE (Tribunal Regional Eleitoral).
Tive que mostrar um documento de identificação e um comprovante de
residência para que eu pudesse receber outro documento de
identificação (Título de eleitor com a inscrição “Cadastro
biométrico”). Ademais, realizei dois outros procedimentos que
supostamente garantiriam minha futura identificação, quais foram: O
registro de minhas digitais e a criação de uma assinatura
eletrônica para o serviço eleitoral. A burocracia dos procedimentos
para identificação do cidadão não é problema exclusivamente de
origem nacional. Esse tipo de exigência desproporcional chegou ao
estrambótico quando o professor Henry Gates Jr foi preso dentro da
própria casa por ter a identificação posta em dúvida.
Especificamente em âmbito brasileiro, temos o exemplo da “prova de
vida”. Trata-se de uma exigência regular
do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) pela
qual
beneficiários apresentam-se
em qualquer agência bancária e “dão
causa”
de
que
eles, os beneficiários, são “eles” mesmos. Exemplos acerca do
tema são fartos: Desde hemorrágicos na fila da UTI que precisam
assinar documentos ao fiscal de portos que pede identificação de
seres inanimados como “contêineres”.
As exceções ficam pelos famosos. O fato é que na saída do IGEO
fui abordado por Marcelo, que se propôs a me acompanhar até o ponto
de ônibus. Marcelo está no último semestre do curso de Geografia.
É um rapaz bonito, branco, olhos castanhos, cabelos claros, baixo,
tem 36 ou 37 anos e, apesar de se articular muito bem, expressa-se
com as duas mãos ao falar. Achei estranho ele se dispor a me
acompanhar até a FAU, visto que ele reside no bairro da Boca do Rio.
Melhor lugar para ele seria o ponto de ônibus da orla. Marcelo
trabalha em uma financeira. Certa vez nos encontramos no bairro do
Comércio, onde nós dois trabalhamos. Esses encontros e desencontros
remete-me aos fundamentos da pesquisa etnográfica. Nos novos
trabalhos científicos a etnografia deixou de ser somente
parte do método antropológico para ser, também, teoria
antropológica. Minhas dúvidas acerca do tema aprofundaram-se quando
li dois artigos, um que afirma que etnografia não é método e outro
que afirma que etnografia é o mais importante método da
Antropologia. O interessante na etnografia, a meu ver, é que se
trata de uma prática inicialmente descompromissada com propósitos
específicos. O alcance da pesquisa geralmente é encontrado após o
início da própria pesquisa e não há prévio estabelecimento de
hipóteses. Uma pesquisa com essas regras na Química,
por exemplo, seria impensável. A ideia da etnografia,
sinteticamente, é a de colher os dados, relacioná-los às
impressões do pesquisador e, finalmente, expor um resultado crítico
que identifique ou resolva determinadas situações-problema. É o
caso de apresentar culturas, modos de vida, práticas civilizatórias,
identificar territórios etc. São diversas as finalidades da
etnografia e impossível aqui listá-las. Ocorre que minha
finalidade, naqueles instantes, era ouvir Marcelo. Ele me disse que
veio do interior da Bahia e que, por motivos de privacidade, não
quis ir para residência universitária. Disse que trabalha em uma
financeira no período diurno e faz estágio em colégio público às
noites. Relatou que está com dificuldades financeiras que foram
agravadas nesse período de crise da economia do país, pois o
dispêndio que tem com o aluguel toma parte significativa dos
rendimentos que obtém. Ao ouvi-lo, reconheço que tive a cisma de
que ele me pedisse “ajuda” nesse sentido. Não estou habituado a
experiências etnográficas e, por espanto, não foi nada do que
pensei. Naquela altura, minha retórica das ciências exatas
sucumbiu-se ante a epistemologia das humanidades.
Na
Matemática, modelo é uma função ou a descrição sinóptica
de uma função. Uma interpretação elementar da realidade. Na
Física, modelo é uma idealização simplificada
de um sistema complexo como a descrição de uma função de onda de
um elétron em estado fundamental. Uma interpretação elementar da
realidade. Na linguística, paradigma tem a ver com a associação
simples
de elementos que servem de referência à constituição de sentenças
como o significado de frases que se mantém mesmo com a alternância
de seus significantes. Uma interpretação elementar da realidade. A
Filosofia denota
que paradigmas atuam historicamente como pressupostos científicos a
serem seguidos, pois efetivamente geram resultados por duradouros
períodos, orientando, desse modo, o desenvolvimento de pesquisas.
Entretanto, ainda no campo da Filosofia, há que se problematizar o
uso de paradigmas, pelo fato de que acabam enquadrando a realidade.
Aprisionam, muitas vezes, o leque de opções de interpretação da
realidade por adotarem um conjunto de procedimentos “consagrados”
que confinam o universo de estudo e os resultados, produzindo
autênticos vícios. É como a “lei” da gravitação universal.
Sabemos que os corpos são atraídos para o centro da Terra, por isso
“caem”, mas dizer que se trata de uma lei me parece absurdo.
Primeiro porque a lei (norma) é feita para ser seguida e logo nós
(humanos) é que vamos ditar
as
normas (prescrições) da
natureza? Digo que a gravitação me parece muito mais uma descrição
de fenômenos que propriamente uma lei. A partir desse ponto surge a
problemática dos obstáculos epistêmicos e a teoria da ruptura
epistemológica. O fato é que paradigmas desde sempre estão
presentes nas ciências, pois servem de contributos a superação do
senso comum em direção ao conhecimento científico. Por
conseguinte, não obstante às conquistas, a cristalização de um
modelo necessariamente produz retrocessos, pois a realidade é
historicamente dinâmica. A etnografia, por outro lado, sobrepuja o
tradicional método científico revolucionando as formas do pensar
exatamente quando dá conta de grande parte dos diversos desequilíbrios
que se aduzem ao pesquisador.
Voltando
aos acontecimentos, paradigmas
sucumbidos ao
fato de
que Marcelo me cantou no ponto de ônibus. Inicialmente tive uma
sensação de estranhamento, pois sou heterossexual e estávamos a
sós. Em contrapartida, naquele momento recordei alguns trechos de
“Contra o método” e incorporei a ideia de que podemos encarar os
fenômenos das mais diversas fomas possíveis, adotando perspectivas
plurais. Isto
posto, fiquei lisonjeado. Pensei novamente na problemática da
identidade. Logo eu, com minha lógica exata, tive a necessidade de
me autoidentificar (quem sou eu?). Meu ônibus chegou e fui embora
após um aperto de mãos. Provavelmente não nos viremos mais na
UFBA. Ele vai colar grau e eu não me matriculei em disciplinas do
IGEO neste semestre.