Você é machista, moça?
(Rafante)
Conversas de bar regadas à
música e bebidas às vezes nos conduzem por caminhos desconhecidos.
Não sei exatamente se as duas crases acima coadunam-se com a relação
sintagmática ora exposta, mas é incontroverso que há no mínimo
uma polêmica acerca do vocativo em epígrafe. Para entendermos bem a
questão é necessário, inicialmente, termos a noção de que
vivemos em uma sociedade segregacionista, adepta da cultura da
violência e que tem estrutura basilar determinada pelos ditames da
propriedade privada dos meios de produção.
Explicarei em detalhes...
A superestrutura social
composta por elementos midiáticos, legais, consuetudinários e por
toda a miríade de insumos que dá sustentação ideológica a
pilhagem do trabalho e à manutenção do sistema de classes permite
que, alguns de nós, reconheçamos que o esforço necessário para
abolir o machismo é absolutamente superior ao esforço necessário
para abolir o próprio sistema de classes sociais. Exatamente porque
já havia machismo na antiguidade escravagista, no feudalismo e em
todos os sistemas econômicos que adotaram a propriedade privada dos
meios de produção e reprodução da vida. É fato que o machismo
passeou pelos sistemas. Posto esse frustrante quadro de nossa
sociabilidade, torna-se inegável a importância de considerar
experiências nas quais
haja formas justas de convivência. E,
para mais,
garantir-se as normas que
preconizam
direitos fundamentais de
diferentes elementos que constituem a sociedade sem estabelecer
privilégios (degradantes)
entre esses elementos.
A exata noção das palavras
Raciocinando nesse sentido,
por certo, os termos humanismo, igualitarismo e feminismo são muito
diferentes e remetê-los uns aos outros indistintamente é um crasso
equívoco de leitura de mundo. Quando alguém lhe pergunta se você é
feminista e você responde que é humanista, é como se alguém lhe
perguntasse se você gosta de vinhos assemblage e você respondesse
que gosta de queijos gouda. São coisas absolutamente diferentes.
Humanismo vem da filosofia moral (reflexão/problematização acerca
do conjunto de valores e princípios que regem a conduta humana),
posto
que coloca
o ser humano como elemento central na escala de importância dos
componentes do mundo. Igualitarismo, de
outro modo, é doutrina
da filosofia política que defende a igualdade de direitos entre as
pessoas. Feminismo, remate-se,
é um movimento social que luta para destruir os padrões de opressão
patriarcal em todos os sentidos. A partir daqui, pode-se
apreender
o que significa machismo e como responder a questão inicial. A
nevralgia dá-se
na conformização gramatical da frase em epígrafe dentro do âmbito
do movimento feminista.
Uma questão de conceito, uma
resposta prática
Dicionário priberam da língua
portuguesa: ma·chis·mo [substantivo masculino] 1. Modos ou atitudes
de macho. 2. Ideologia segundo a qual o homem domina socialmente a
mulher. Palavras relacionadas: macheza, machista.
"machismo",
in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/machismo
[consultado em 12-03-2018].
Pois bem, qualquer processo
histórico de socialização é inequivocamente mutante e as formas
de opressão ligadas a esses processos também o são. Ocorre que as
consequências do próprio processo de socialização em evidência
são propositadamente negligenciadas, exemplo disso é quando se
afirma "mulheres devem ser assim ou assado", "é feio
menina de cabelos curtos", "isso não é jeito de menina
sentar". Afirmações que, muito pelo contrário, são
apresentadas como uma predisposição natural de gênero do tipo
mulheres são (nascem) assim e homens são (nascem) assados, como se
não existissem estruturas sociais beneficentes da exploração de
gênero e como se houvesse um conjunto cromossômico que determina a
ação humana. Tais afirmações, quando ditas por mulheres, devem
ter o mesmo grau de reprovação que quando ditas por homens, mas há
especificidades que merecem ser explicitadas quando isso acontece.
Para explorar essa questão, posso dizer que comparar
é confrontar uma coisa com o padrão estabelecido
com o objetivo de determinar graus de diferença e/ou de igualdade
entre a coisa e o padrão. É a partir da comparação que podemos
desvelar a real diferença e a patente igualdade (ou equivalência,
como queira) entre os objetivos de uma doutrina, entre o cáustico e
o ácido ou entre uma frase machista pronunciada por um homem e uma
frase “machista” pronunciada por uma mulher.
Vamos aos detalhes
O padrão de comparação
entre o bakuninismo e o liberalismo está assentado na natureza
da propriedade, o
padrão de comparação entre o cáustico e o ácido é o potencial
hidrogeniônico da água e o padrão de comparação entre uma frase
machista pronunciada por um homem e uma frase “machista”
pronunciada por uma mulher? O presente artigo não é um roteiro de
propaganda de refrigerante, mas "pode ser" o sujeito da
ação? "Pode ser!" O fato é que quando um homem diz
"lavar pratos é trabalho de mulher", ele está se
beneficiando de alguma situação concreta ou, ao menos,
beneficiando-se
da condição de ser homem. Emergem-se desse caldo privilégios e
manutenção do sistema de dominação patriarcal. Nessa quadra,
a misoginia inicia quando se deprecia qualquer atividade feminina e
continua quando estabelece único gênero a uma atividade comum de
dois gêneros.
Dos processos de alienação
social
E quando a mulher pronuncia a
mesma frase? O ponto nevrálgico está no grau de equivalência e no
falseamento simétrico que podemos incorrer ao interpretar um ponto
comum na geografia dos sujeitos sociais. Quero dizer que a mulher que
afirma "lavar pratos é trabalho de mulher", reproduz o
discurso machista, mas não pode ser ela própria machista, pois está
disseminando
um discurso que também a oprime. Desse modo, o fundamento do
discurso de dominação hegemônica está ligado ao sujeito que se
beneficia de determinada prática ideológica. A superestrutura entra
nesse jogo como mecanismo de elaboração e vulgarização
da alienação social que força a apropriação acrítica das idéias
do outro, vitimizando determinados sujeitos. Isto
posto, diz-se que a
mulher que reproduz o discurso machista está, na verdade, incorrendo
nos processos de alienação social, mas não é ela própria
machista, pois não se beneficia do discurso proferido, pelo
contrário, é vítima, porquanto
sofre opressão.
Faça-se
a luz com a idéia de homens feministas, por um lado, ou gays
homofóbicos, por outro. Da mesma forma o racismo, mas neste
caso eu teria que explicar também a geografia das coisas (racismo no
Brasil, racismo na península arábica et cetera) e geografia é
deveras complexo para
discorrer em poucas laudas.
Agora é que são elas
Pra finalizar, quero que tire
uma dúvida minha, caro leitor, visto
que estou com uma pulga
atrás da orelha: Qual erro gramatical há na frase "Você é
machista, moça?"